Silvia Alapanian
Doutora em Serviço Social pela PUC/SP,docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, pesquisa a atuação do Assistente Social no Sistema sócio-jurídico.
Resumo: Nesta breve reflexão nada mais fazemos do que instalar a discussão apresentando o ponto de vista de autores clássicos como Norberto Bobbio, Max Weber e a crítica marxista ao Direito. Abordamos também alguns aspetos relativos aos problemas concretos de aplicação das leis e a crise do Poder Judiciário no mundo globalizado.
Introdução
Desde o movimento de reconceituação, que marcou os caminhos da profissão de Serviço Social na América Latina no sentido de uma visão crítica de sociedade ancorada no largo espectro de posicionamentos críticos à dominação capitalista e movimentos anti-imperialistas, que a luta pelos direitos sociais é uma bandeira de segmentos importantes da categoria.
Alusões aos direitos de cidadania são freqüentemente encontradas nos documentos mais importantes produzidos pela categoria profissional nos últimos 25 anos No ideário coletivo dos assistentes sociais encontramos referências à justiça social, aos direitos sociais, aos direitos humanos, entre outros conceitos.
No entanto, podemos dizer que, mesmo tendo formalmente superado os princípios de dignidade e perfectibilidade humana, de inspiração neotomista, estes ainda têm sobre os agentes profissionais grande influência, e a utilização dos conceitos de direitos sociais, justiça social e outros é perpassada, no Serviço Social, por uma postura que nos aproxima muito mais da idéia de uma justiça emanada por Deus do que de uma justiça construída pelos homens. Isto é, os conceitos de direitos sociais e de justiça social são utilizados como premissas universais.
Nos primeiros anos do movimento de reconceituação latino americano o Direito, na sua forma de leis, foi identificado com o Estado autocrático e, sem dúvida, interpretado como um instrumento de coerção. A idéia de justiça, por sua vez, permanecia como fundamento ético da profissão.
Do ponto de vista da influência dos referenciais marxistas sobre a prática dos profissionais, temos que nesses primeiros anos do movimento de reconceituação, na efervescência da luta contra a ditadura, ainda era possível para alguns poucos segmentos da categoria desenvolver uma proposta de ação profissional não institucional, vinculada aos movimentos populares na sua maioria. Não obstante a maior parte da categoria atuasse institucionalmente, era possível vislumbrar algum tipo de prática profissional engajada nos movimentos.
Já num segundo momento, quando a luta pela democratização substitui a ditadura, quando os movimentos populares, os sindicatos, os partidos políticos, etc., alcançam um status de legalidade, o exercício profissional “não institucionalizado” perde a sua razão de ser.
O lócus privilegiado da ação profissional volta a ser a instituição e algumas das conquistas da luta democrática contra a opressão, dentre elas alguns avanços na área da legislação social, passam a ser os principais instrumentos de ação política dos Assistentes Sociais, inclusive no âmbito institucional.
No marco de uma sociedade democrática, o Direito, na forma de leis, torna-se para a categoria profissional um instrumento de defesa de cidadania. No entanto os seus limites são pouco compreendidos pelos Assistentes Sociais, muito provavelmente pela inspiração neotomista que se matem forte na categoria profissional, em contraposição a uma inspiração mais claramente liberal da idéia de justiça e de direito.
Não é raro encontrarmos quem, hoje, no interior da categoria profissional, duvide das possibilidades de aplicação de boa parte do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL:1990), sem compreender o porquê dos limites da legislação, e o alcance de suas formas de aplicação, isto para citar um entre os vários exemplos de legislação social com dificuldades de implementação.
Neste sentido cremos ser de fundamental importância aproximar os Assistentes Sociais do debate acerca do Direito, da sua natureza, sua doutrina, seus limites e possibilidades de aplicação na sociedade capitalista. Como um passo inicial nesse sentido, apresentamos aqui uma breve reflexão sobre os limites e as possibilidades de aplicação do Direito no mundo atual marcado pela globalização e pelo neoliberalismo.
O mundo globalizado e os limites da aplicação das leis
Assistimos hoje, estarrecidos, à dramática ofensiva neoliberal contra os projetos mais civilizados de sociedade construídos pela humanidade nos dois últimos séculos.
Pensados como alternativas ao sistema capitalista, com o objetivo de avançar no sentido da construção de um modo mais humano de organizar a existência das pessoas, esses projetos parecem sucumbir, dando origem ao que José Paulo Netto chama de crise global da sociedade contemporânea (NETTO:1995).
Nessa crise global, os caminhos formulados pelos trabalhadores para superar o capitalismo se mostraram impotentes para resistir à reação do grande capital em crise. As alternativas do socialismo real e do Welfare State, por exemplo, não se apresentam hoje aos trabalhadores como se apresentam meio século atrás: aglutinadores da luta por um projeto societário transformador.
Hoje os partidos que se colocam no espectro da esquerda buscam, em todo o mundo, adequar-se aos limites do modelo econômico imposto pela força do grande capital internacional organizado em monopólios, colaborando desse modo na consolidação da hegemonia do capital financeiro que promove a concentração de renda e a exclusão social.
Dentre as alternativas de enfrentamento ao neoliberalismo é provável que a mais visível seja a representada pelos movimentos de ressurgimento da social-democracia. A chamada de social-democracia “light”, da qual é representante Tony Blair, na Inglaterra, ressurge nas últimas décadas e tem como paradigmas a luta pelos direitos de cidadania e pela democratização da sociedade em todos os níveis.
Autores de outra vertente política, como José Paulo Netto também reconhecem que essa luta dos trabalhadores pela democracia e pelos direitos de cidadania é essencial pois
...um enquadramento progressista da crise global contemporânea, mesmo no marco da ordem do capital, é função de amplos movimentos de massa que apontem para a superação desta ordem. Numa palavra: mesmo que não estejam ‘maduras' as condições para a transição socialista, é o conjunto de lutas que a tenham como escopo que pode bloquear e reverter a dinâmica que hoje compele o movimento do capital a rumar para a barbárie. (NETTO:1995;84).
Entretanto, o balanço dessa luta não tem sido positivo. No Brasil como em toda a América Latina a ofensiva do neoliberalismo vem corroendo as bases sociais que sustentam a democracia e conseqüentemente a garantia dos direitos de cidadania, levando-nos a questionar sobre os limites da política social-democrata e as possibilidades de que ela se torne efetivamente um freio para o avanço neoliberal.
Os programas de estabilização monetária baseados na atração de capital especulativo promovem a estagnação prolongada da economia, endividamento generalizado, elevação exponencial da dívida pública e empobrecimento maciço da população. Os próprios governos de inspiração social-democrata são capturados pela lógica neoliberal e compelidos a reproduzir essa política econômica sob pena de isolamento em relação ao mercado global e sanções econômicas dos países centrais, o que coloca em risco qualquer tentativa de ampliação ou mesmo de manutenção dos direitos sociais conquistados.
Os rebatimentos desse conflito na ação do poder público são nefastos, como muito bem coloca Emir Sader:
Essa corrosão das bases sociais da democracia leva à degradação dos sistemas políticos, ancorados em economias e Estados financeirizados, em máquinas de exclusão social capitaneadas pelos ministérios econômicos e pelos bancos centrais e em elites corruptas, que aceleram a privatização do Estado.... Essa corrosão do espírito público leva a um esgotamento da legitimidade dos sistemas políticos, que, como peixes, começam a apodrecer pela cúpula do Estado, pelas elites dominantes.(SADER:2000)
A luta pela democratização da sociedade, seja a social-democracia capaz ou não de dirigi-la, é uma necessidade para preservar mecanismos que garantam um mínimo de vida civilizada e avançar na construção de novos patamares de progresso social. No caso brasileiro vimos essa luta ganhar expressão em fins da década de 70, início dos anos 80 com o amplo movimento pelo fim da ditadura militar.
Nesse período experiências neoliberais vinham ganhando expressão em todo o mundo, seguindo o exemplo do Chile de Pinochet, de Reagan e de Tatcher, nos EUA e Inglaterra respectivamente. O movimento que se forjou aqui reivindicava ao mesmo tempo o fim da opressão política e a ampliação dos direitos de cidadania com investimentos na área social (saúde e saneamento, educação, habitação, etc.).
Esse movimento abriu espaços para uma maior expressão dos segmentos populares criando canais para a ação de massas (greves, passeatas, manifestações, etc.) e também para a luta pela via institucional como as denúncias aos órgãos competentes, processos e tentativas legais de alterações na legislação.
O movimento criou a possibilidade de um novo período na história brasileira e este foi inaugurado com a Constituição de 1988. Os debates que antecederam sua promulgação foram intensos e criaram expectativas positivas nos vários segmentos organizados da população.
O texto constitucional apresentou-se na forma da síntese possível dessas posições na época sem, no entanto, ocultar as contradições e conflitos entre os vários interesses econômicos e sociais presentes em nossa sociedade.
Desta maneira, muito do que se conseguia de avanços no sentido de ampliação de direitos e garantias civis foi resultado da pressão popular. Vivemos a partir de então uma sensação de vitória conquistada pelas forças progressistas do país, pelo fim da ditadura e pela decretação de um texto constitucional elaborado a partir de debates democráticos.
Do ponto de vista político, passados mais de dez anos daquele momento histórico, o Brasil seguiu a tendência de levar ao poder governos que se apresentaram como de inspiração social-democrata, primeiramente com Fernando Henrique Cardoso (embora neste caso a inspiração esteja restrita apenas à sigla partidária: Partido da Social-Democracia Brasileira – PSDB) e mais recentemente com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder.
No primeiro caso tivemos um período de economia marcada pela recessão, cortes nos gastos públicos e privatizações, no caso de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, apesar do curto espaço de tempo, tudo indica que a reversão desse quadro vai ser muitíssimo difícil.
Do ponto de vista institucional, o período inaugurado pela Constituição de 1988 foi marcado por alguns avanços no sentido da ampliação e das garantias dos direitos de cidadania. Alguns exemplos como a criação do Sistema Único de Saúde, a Legislação afeta à área da Assistência Social com a Lei Orgânica da Assistência Social e a afeta à proteção da infância e da juventude com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
No entanto observamos também que esses avanços não acontecem linearmente e nem cumulativamente. Ora se avança, ora se retrocede na ampliação desses direitos. A luta constante e a vigilância sobre as ações governamentais são necessárias muitas vezes para não se perder um direito constitucionalmente assegurado, numa permanente luta para a manutenção dos alicerces do Estado democrático de direitos.
Ou como bem coloca a Professora Marilda V. Iamamoto ...a Constituição parece tornar-se “inconstitucional”, na ótica do governo, por “inviabilizar o Estado”, o que vem colocando em risco algumas conquistas fundamentais obtidas no campo dos direitos sociais. (IAMAMOTO:2000;160).
Esse movimento é a expressão sinuosa e contraditória da luta de classes num cenário democrático que envolve atores diversos atuando em espaços diferenciados. A legítima ação dos movimentos político-partidários e dos movimentos populares com seus instrumentos apropriados encontra aliados também na resistência contra a ação impune dos patrocinadores do grande capital no seio das próprias instâncias do Estado, a despeito do apodrecimento das estruturas do Estado citada por Emir Sader.
Mesmo sem hegemonia, no interior dos três poderes que constituem o Estado, encontramos aqueles que buscam realizar ações sintonizadas com o Estado de Direito. Um exemplo disso é o papel que vem assumindo o Ministério Público brasileiro na denúncia da não aplicação, ou aplicação desviante da Lei Constitucional.
A ação desses segmentos que agem a partir do interior do Estado tem utilizado como referência a carta constitucional, a Lei fundamental do Estado, e como instrumentos as ações judiciais. Cabe ao Poder Judiciário interpretar a Lei maior, definindo quem, como e quando esta é desrespeitada e quais sansões cabem a quem o fizer. Estes setores encarnam um importante movimento de resistência.
Por outro lado, temos assistido a um fenômeno complexo que José Eduardo Faria chama de “tribunalização” ou “judicialização” da política, explicado por ele da seguinte maneira:
Seja em virtude do conflito de competências entre os três poderes, seja porque o Judiciário atua num patamar de complexidade técnico-jurídica maior de que a do Legislativo e do Executivo, seja pela resistência de determinados setores da sociedade à revogação dos direitos fundamentais e sociais pelos processos de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, o fato é que, quanto mais cambiante é esse cenário [o autor refere-se à globalização econômica e seus reflexos], mais o Poder Judiciário acaba sendo levado ao centro das discussões políticas, mais tem de assumir papéis inéditos de gestor de conflitos e mais dificuldades tem para decidir... (FARIA: 2001;15)
Evidencia-se aqui a participação de um ator normalmente muito discreto e pouco estudado: o Poder Judiciário. Compreender seus mecanismos de ação, bem como as influências, pressões que sofre, e as modalidades de respostas a elas, são essenciais para estabelecermos com clareza os reais limites do Estado de Direito e os caminhos para a ação política no sentido da garantia dos interesses dos trabalhadores.
Para sermos mais específicos: é importante saber como se manifestam, no interior do Poder Judiciário, e qual o grau de resolutividade (ou independência) possível deste Poder com relação aos conflitos que atingem a política governamental em desacordo com a legislação democraticamente elaborada.
A compreensão do papel do Poder Judiciário na estrutura política da sociedade deve partir de uma análise geral da sociedade globalizada. As conseqüências das transformações mundiais que sobrepõem mecanismos transnacionais como O Fundo Monetário Internacional ou a Organização Mundial do comércio, aos interesses nacionais estabelecidos na Carta Constitucional, estão levando o Poder Judiciário no Brasil, assim como em outros países periféricos, a uma crise de identidade. As leis, os códigos, as regras e as normas estabelecidas, que devem ser seguidos pelos cidadãos de um Estado-nação, são perpassados por determinantes da economia globalizada.
Este fenômeno reduz a autonomia, a autoridade e o equilíbrio dos três poderes do Estado moderno, tal como foi concebido. No caso do Poder Judiciário, conseqüentemente, reduz a sua capacidade de colocar em prática esse sistema de normas.
Sistemas paralelos de normas são criados e legitimados por organismos que detém o poder, com o consentimento dos legisladores que apelam para a desconstitucionalização ou deslegalização:
Afinal, se quanto mais tentam planejar, controlar e dirigir menos conseguem ser eficazes e obter resultados satisfatórios....não lhes resta outra alternativa para preservar sua autoridade funcional: ou seja, quanto menos tentarem disciplinar e intervir, menor será o risco de serem desmoralizados pela inefetividade de seu instrumental regulatório. (FARIA:2001;12)
Contudo, se é verdade que há uma erosão da autonomia e poder do Judiciário, também se verifica o crescimento sistemático do número de ações, julgamentos, procedimentos, enfim, um volume crescente de pessoas acorrendo aos Tribunais de Justiça em todo o país.
O crescimento da demanda parece estar marcado por um sentimento de credibilidade na Lei. Talvez não no Poder Judiciário em si, mas na Constituição, nas conquistas de direitos garantidos por esta. A população acorre ao Judiciário em busca de seus direitos. O acesso à justiça foi ampliado pela Constituição a segmentos antes excluídos, como famílias, idosos, deficientes físicos, índios, homossexuais, etc.
Na seqüência, a ampliação da estrutura físico-administrativa do Poder Judiciário é visível. As reformas e construções de edifícios para abrigar Fóruns, a criação de Tribunais Especiais como o de pequenas causas, as experiências de tribunais de conciliação, a ampliação dos serviços técnicos especializados como os das Varas de Infância e Juventude. Em todo o país essas estruturas vêm sendo ampliadas, mas o Poder Judiciário continua lento, inoperante.
Uma reflexão necessária sobre essa realidade é feita por Luiz Fernando Cabeda, em seu livro A Justiça Agoniza , remetendo a discussão à esfera da reflexão sobre a chamada crise do Judiciário e a suposta necessidade de sua reforma:
Há uma falsa cultura da litigância que faz com que, por exemplo, a Alemanha (que tem metade da população e uma estrutura do Judiciário Trabalhista muito semelhante à do Brasil) registrasse cerca de 4.500 ações reclamatórias em 1998, enquanto que aqui foram interpostas aproximadamente 2.500.000 no mesmo ano. (CABEDA:1998;14)
Para o autor o Poder Judiciário não passa por uma crise ou necessita de uma reforma, o que existe ...é a ausência de um efetivo poder organizado a partir dos elementos que lhe dão fisionomia, é uma Justiça da crise. (CABEDA:1998;24). O aumento de volume de reclamatórias, de ações judiciais e processos não seria então reflexo de uma ampliação de mecanismos democráticos e da falta de estrutura física ou organizacional para atender essa demanda.
De nada adiantaria, segundo Cabeda, a criação de outras instâncias ou tribunais especiais, se o sistema de justiça está corroído na sua base que é o Direito, a doutrina do Direito mais precisamente. Ele aponta que o Poder Judiciário executa uma justiça apropriada para um momento de crise, e não uma justiça que busca a garantia de direitos.
Esta situação extrapola a realidade brasileira, de nação capitalista periférica, dependente e de desenvolvimento industrial tardio. Dada a natureza global do fenômeno neoliberal e o aprofundamento da crise econômica mundial com o esgotamento dos mercados, é de se esperar que essa modalidade de rebatimentos no Poder Judiciário amplie o seu espectro de ação e afete cada vez um maior número de países ao redor do mundo.
Dadas as dificuldades que os órgãos como o Poder Judiciário têm de colocar em prática dos direitos, principalmente os direitos sociais, estabelecidos na legislação poderia se questionar se a doutrina do Direito estaria corroída? Acreditamos que seria necessário refletir sobre os limites e possibilidades do Direito como mecanismo democrático, como mecanismo que atingiu a sua forma mais avançada justamente no marco do capitalismo.
Conclusão
Se tomarmos por base a concepção de Rousseau sobre o Direito, segundo a qual ele é a expressão da vontade geral, abstrata, teremos que, não há incompatibilidade alguma entre o Direito e a democracia. Ou seja, um estado regido por leis estabelecidas com a participação do conjunto da sociedade é necessariamente democrático.
Max Weber, por sua vez, introduz um elemento importante para complementar essa identificação do Direito com a lei quando apresenta a discussão da legitimidade. Para ele o poder legal é aquele que adquire legitimidade quando segue as regras preestabelecidas e ...pressupõe órgãos especificamente destinados à produção e à contínua modificação destas regras, como são exatamente os órgãos legislativos, que vão se diferenciando através de um processo natural de divisão de trabalho dos órgãos do poder judiciário e administrativo. (BOBBIO E MATTEUCCI: 1988;354)
Assim, a legitimidade das democracias parlamentares modernas está assentada no fato de que a elaboração das leis estaria desvinculada de sua aplicação e execução. Não há pois, corrosão do Direito em si, pelo contrário, há um processo de consolidação do Direito assentado na lei em relação às antigas formas do Direito consuetudinário.
Já na concepção madura de Karl Marx sobre o Direito vamos encontrar uma crítica à possibilidade dele ser uma forma de expressão democrática. Para Marx o Direito:
...é essencialmente epifenomenal, parte da superestrutura, um reflexo das concepções, das necessidades e dos interesses de uma classe dominante, produzida pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção que constituem a base econômica do desenvolvimento social (KAMENKA: 1988;109)
Nessa medida ele é essencialmente mecanismo de dominação de classe, dominação que ocorre não apenas pela imposição na medida que o Direito está umbilicalmente ligado ao Estado, mas também em forma de alienação. Agnes Heller resume boa parte das discussões no âmbito do marxismo na passagem que reproduzimos a seguir:
O direito regula principalmente a distribuição dos bens produzidos pela sociedade; regula além disso, as formas de contato entre os homens com base nos critérios de “lícito” e “ilícito”. Desse modo é garantido, em última instância, o poder de uma classe, de um extrato, de uma camada dominante. O direito é por princípio um fenômeno de alienação, na medida em que sua aparição como esfera autônoma está ligada á aparição de um Estado separado dos homens. Ao mesmo tempo, o direito, reduzindo as ações “ao que é lícito” e “ao que é ilícito”, é algo intrinsecamente formal. Quanto mais desenvolvido é o direito, tanto mais formal é, o grau máximo é alcançado neste campo pelo direito burguês, o qual... proíbe igualmente o rico e o pobre de dormir embaixo das pontes. (HELLER:1991;181) [tradução nossa]
As formulações de Marx e de Engels sobre o direito impuseram uma conclusão radical sobre as possibilidades de existência de alguma forma de direito que não estivesse vinculada com a dominação e a alienação dos homens e portanto que possibilitasse a democracia radical e a liberdade da humanidade. Evgeni Pachukanis em sua obra intitulada A Teoria Geral do Direito e o Marxismo faz alusão a esta questão quando discorre a possibilidade de existência do Direito em uma sociedade de homens livres:
A transição para o comunismo evoluído não se apresenta, segundo Marx, como uma passagem para novas formas jurídicas mas como um aniquilamento da forma jurídica enquanto tal, como uma libertação face a esta herança da época burguesa destinada a sobreviver à própria burguesia. (PACHUKANIS;1977:61)
Tomando por base estas idéias a questão não se coloca na corrosão do Direito, mas na impossibilidade da lei ser um mecanismo de expressão da vontade da maioria das pessoas e portanto da impossibilidade do modelo ideal de sociedade burguesa, democrática, baseada no Direito positivo e na divisão dos poderes de ser efetivamente democrática no mundo da economia globalizada. Cremos ser esta uma discussão pertinente aos assistentes sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARANTES, R.B. Judiciário e política no Brasil . São Paulo, Idesp, Série Justiça, Editora Sumaré: Fapesp: Educ, 1997.
BOBBIO, N. MATEUCCI, N. e PASQUINO. G. Dicionário de política . Trad. Carmen C. Varriele et al. Editora Universidade de Brasilia, Brasilia, 1998.
BRASIL. Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente , Brasília, 1990.
CABEDA, L. F . A justiça agoniza: ensaio sobre a perda do vigor, da função e do sentido da justiça no Poder Judiciário , São Paulo, Editora Esfera, 1998.
FARIA, J. E. O poder judiciário nos universos jurídico e social: esboço para uma discussão de política judicial comparada . In. Revista Serviço Social e Sociedade, ano XXII, n. 67, set/2001, São Paulo, Cortez Editora, 2001.
HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana . 3ª ed. Ediciones península, Barcelona, 1991.
IAMAMOTO, Marilda V. O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional . Cortez Editora, São Paulo, 3 a ed., 2000.
KAMENKA, Eugene. Direito . In: Bottomore, Tom. Dicionário do pensamento marxista . Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988, pág.109-110.
NETTO, J. P. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal . Coleção Questões da nossa época, v. 20. São Paulo, Cortez Editora, 2ª ed. 1995.
PACHUKANIS, Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo . Trad. Soveral Martins, Centelha, Coimbra, 1977.
SADER, Emir. Neoliberalismo ou democracia. Jornal Folha de São Paulo, Segunda-feira, 02 de outubro de 2000, pág. A3.
OBSERVAÇÃO: Este artigo foi publicado originalmente no Serviço Social em Revista
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Excelente,sensacional!
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